quarta-feira, agosto 18, 2004

AS GALINHITAS DO MENINO JESUS

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AS GALINHITAS DO MENINO JESUS


JOSÉ FRANCISCO COLAÇO GUERREIRO

A seguir aos frios e às chuvadas que se prolongaram por meses , o céu começa a clarear e o sol já se atreveu a romper as poagens que são falripas das nuvens grandes e escuras que toldavam o astro.
Timidamente, o tempo vai amornando, faz-se um compasso de indecisão durante uns dias, ora escampa, ora se embrulha, como que não deixando a bonança soltar-se, mas porque é chegada a altura de romper o viço, por toda a banda a vida já desperta.
Muito antes dos cucos, chegaram os papalvos e mais cedo ainda, vieram as andorinhas que se exibem em voos rasantes e em cantorias tão insistentes e próximas que a gente até cuida perceber, o que querem dizer, no seu chilreado.
Os moços, tão maus para os pássaros como os gatos, ou mais ainda, porque usam outras artes, resistem a fazer-lhes mal. Só à socapa, lá vai de vez em quando uma fisgada furtiva a um ninho, mas fora disso, resignam-se ao seu convívio numa atitude quase que reverencial e medrosa. È uma ave abençoada por Deus no nosso imaginário colectivo e cedo aprendemos que o Menino Jesus não perdoa quando se Lhe mata uma galinhita. Ensinam-nos a respeitá-las quando ainda estamos no berço. Começamos a devisá-las esvoaçantes mal abrimos o olho e o seu cantar tanto serve para embalar um sono como de entretenga para calar um pranto. De colo em colo, ouvimos contar as histórias dos seus ninhos, falam-nos da lonjura das suas viagens e elogiam o amor e o sacrifício que as trás de volta todas as temporadas.
Da janela da cozinha vemos de amiúde uma, pousada no arame da roupa, um pouco abaixo do ninho que tem no beiral. Olha para nós sem medo e canta , canta muito, muito repenicado. Escuta! Escuta o que ela diz:- “Fui à fonte, vim da fonte, varri casa, lavei loiça e agora pus-me aqui”…
Parecia mesmo que falava, soletrava as palavras com a minha imaginação sugestionada pela lenga lenga. Escuta mais! Agora diz: -“ Homem do monte, domingo na vila, copo vai, copo vem, borrachinhooooo”.Oh!….pasmava…. e como eu, gerações de meninos tinham ficado boquiabertos olhando aqueles passarinhos lindos, mirando-lhes o brilho das suas capas num preto azulado, em contraste com a alvura da parte de baixo, onde assenta tão bem uma gravatinha de vermelho tijolo.
Na quietude dos dias, havia vagar e silêncio para escutar. Sobrava a poesia e a imaginação para alimentar a fantasia das crianças que ouvindo-as e observando-as, interiorizavam um respeito profundo pelas avezitas.
Mais tarde, os pais empoleiravam-nos para preitarmos o interior do ninho. Por fora, parece um cocharrinho feito de milhentos voos e de outras tantas pitadas de barro, trazidas de uma qualquer poça distante que resistiu ao sol no meio de uma estrada, ou de um qualquer lavajo que junto a um poço se formou com a água entornada no encher das pipas.
Mas por dentro é fofinho. Lá tem os pastinhos mais finos do campo.As guedelhinhas de lã de ovelha menos enxovalhadas encontradas no ferragial e as penas mais suaves caídas em todo o rossio do monte.
Passados dias, um, dois , três, quatro ovinhos. Bicudos, todos salpicados de um vermelho escuro.
Depois vem o choco. Enquanto ela os abafa, ele desunha-se a cantar o seu contentamento. “…Homem do monte, domingo na vila, copo vai, copo vem, borrachinhoooo”.
Faz-lhe companhia e dá-lhe mimos.
Aproveitam ambos, o melhor que podem, aquela pausa e descansam, porque não tarda a iniciarem uma azáfama incessante para alimentarem um ninho cheio de bicos amarelos, sempre escancarados, goelas vermelhas, sempre estendidas, para engolirem com sofreguidão toda a sorte de mosquito e de bichinho voador.
Depressa se assomam e logo se mostram já todos empenados.
Cá em baixo, os gatos lambem-se enquanto desejam que lhes aconteça algum descuido. Mas só raramente é que a gente vê um andorinho caído do ninho. Talvez seja por sorte sua ou azar da gataria que nesta altura já anda com o rabo cheio de pardais cuzudos menos destros nas primeiras experimentações do esvoaçar.
De dia já saem, espreguiçam-se ao sol, catam-se e debicam as plumas para soltarem o resto da penugem que ainda embaraça. À noitinha voltam ao amalho, mas têm arranjar outro poiso porque no ninho a mãe já começou uma segunda postura.
No fim do Verão, começam a juntar-se todas, às centenas, aos milhares, perfiladas nos fios eléctricos, onde ora se catam ora ficam muito pensativas balanceadas ao sabor do vento. E numa bela manhã, por elas escolhida, sem avisarem, partem em bandos com destino ao fim do mundo, onde também deve haver mães com meninos ao colo, à espera dos seus cantorios, para os embalarem num sono ou para os calarem num pranto