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REGO A BAIXO, REGO A CIMA
de
José Francisco Colaço Guerreiro
O tempo tem vindo agreste. Desde os santos que o céu se toldou e salvo uma aberta ou outra, tem chovido desalmadamente. As sementeiras fizeram-se debaixo de agua, acrescentando mais sacrifício ao custo do trabalho, rego abaixo, rego a cima, com as botas passadas e recobertas de lama, mais pegadiça nas terras barrinhas, que gelam os pés apesar de andarilhos. As mãos cobrem-se de um cieiro profundo que só vai passar lá mais para diante, entretanto, não dão à vondo para o trabalho e por isso não sobram para as algibeiras. Agarram na rabicha da charrua, seguram nas arreatas, dão volta à aiveca , manobram o chicote, estrambalham a semente, carregam o sementeiro. Só quando ficam dormentes, perdendo a sensibilidade e a força, é que se pára um instante para as esfregar, procurando amornar o caramelo que vidra os dedos. Sobre as costas um mantolho, outras vezes uma saca de guano fazendo de capuz cobrindo o chapéu que ainda bem não, solta uma pinga que escorre negra de tinta e suor antigo, deixando no rosto marcas de tisna que a chuva a seguir logo há-de apagar.
Vieram muitos dias de casinha, daqueles em que mesmo as bestas resistem em sair, tanto que é o vento, tanta que é a chuva, que do rijo ameaça cair o dia todo, cerrando o horizonte como um poço por cima do qual só se vislumbram cordões de água, mas se não se acudisse à sementeira enquanto a terra podia com a gente, metade do cereal ficava ensacado e esse não dá fundalhas.
À hora de almoço, procura-se uma abrigada e faz-se um belo fogo. Come-se a bucha e seca-se a farpela. Com um pau de esteva, tira-se a lama que se pode, das viras ao redor das botas e descola-se o enchimento de lama que nivelou as solas com os saltos. Desatam-se os plainicos feitos de saca que embrulham as canelas envoltas em jornais . Tiram-se depois as alqueiveiras e metem-se-lhes brasas e rescaldo dentro. Sacoleja-se e faz-se correr o braseado dos calcanhares até às biqueiras e no sentido inverso, vezes à fio. Depois, colocam-se à beira da chalda e enquanto vão deitando vapor, desapertam-se os nastros das ceroulas e descalçam-se as meias de linha descoradas feitas e várias vezes amanhadas, com quatro agulhas, aos serões e às soalheiras que agora quase se podem torcer.Os ganhões então, todos em larada, lançam as chancas grandes e muito brancas em direcção ao fogo.Ficam assim uns instantes, de perna esticada, revirando os dedos para baixo e para cima .Quando acham que basta, calçam as mesmas meias ainda fumegantes, voltam a apertar os nastros das ceroulas, dão mais uma passagem com as botas pelo fogo e calçam-nas sentindo um conforto que lhes retempera as forças o resto da tarde.
Depois, em dois tempos, comem o conduto e mastigam o pão que na balsa trouxeram. Vão armar umas quantas ratoeiras à passarada que os segue gulosa pela bicharada que desenterram ou pela semente que antes lançaram.
Tá na hora. Tiram as cevadeiras às bestas. Destapam-nas puxando os panais que as cobrem. Os seus corpos fumegam uns instantes e na pelagem mostram sinais de arrepios.Outra vez os cabrestos,os malhins, as cangas, as boleias, as tiradoiras, as charruas, o chicote e o puxo, rego abaixo, rego a cima.
Depois de milhentas caminhadas paralelas, com a tencharia temperada por mãos sábias, chega ao fim a jornada grande apesar da jorna ser pequena.
Soltam-se as parelhas das charruas para se prenderem nos carros. Antes de se meterem a caminho do monte, os homens esgueiram-se para recolher as ratoeiras e arrecadam os passarinhos incautos que nelas caíram picando os baguinhos de cevada ou nos bichos barris feitos isco. Das asas de uma cotovia arrancam três penas para fazerem um atado com os cagões, as arvelas , as patinhas e os outros mais que metem na balsa.
Já é sol postinho quando chegam ao monte, já é noite cerrada quando chegam a casa.
Antes da ceia, repetem os cuidados para secar a farpela. Da balsa retiram depois os passarinhos que depenam , abrem e limpam do que não presta . Põem-lhes dentro umas pedrinhas de sal e colocam-nos a num recocão feito no borralho. O cheiro do chamusco das penas e o do assado, atraem os filhos que largam a brinca. Encavalitados nos joelhos dos pais, tarrincam e saboreiam aqueles mimos e com pouco mais, vão a seguir para a cama.
Os corpos vinham dormentes e dormentes já vão, na alvorada, a caminho do monte.
O vento está barbeirinho. À beira dos caminhos e ao redor da vista , a geada branqueja e já há-de ser tarde quando ela se sumir das umbrias.
Vão ainda bem longe mas o rafeiro do monte já deu rumor.Também lá, ainda ao lusco fusco, a vida tinha deitado a preguiça da cama para fora. um governo que não tem fim para se fazer, todos os dias, com o mesmo cuidado.
E hoje, como ontem e como amanhã, porque estamos em maré de sementeira, quer chova quer vente, o dia é passado rego abaixo, rego acima debruçados sobre a rabiça de uma charrua que em linhas direitas vai escrevendo os segredos do sabor do pão.