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A CEIFA NO BAIXO ALENTEJO.
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O dia da labuta da ceifa era um acontecimento deveras importante para todos.
A imagem é dos primeiros anos do século passado numa herdade do Baixo Alentejo
O Sol "aperta" a pçanície alentejana e o verde tranquilo das searas mimosas já há muito desapareceu, dando lugar ao amarelo dourado das espigas "em acção" de ceifar.
Já chegaram os "ratos" ou "ratinhos" - homens das beiras que se deslocam ao Alentejo propositadamente para as ceifas e que trazem na bagagem os célebres pratos "ratinhos" ou "troca trapos" - anunciando no seu brado de vozes de timbre próprio e na sua indumentária sui géneris que chegou a época de um dos trabalhos mais difíceis a que a agricultura obriga as humanas criaturas.
Tombam-se em primeiro lugar porque secam muito antes dos trigos, que se aguentam mais tempo de pé sem perderem o grão.
No ar, nem uma brisa de ar fresco, apenas o vento suão acicatando barbaramente os corpos dobrados dos ceifeiros,mulheres e homens rijos a quem o sol tosta as carnes, sem que lhes consiga amolecer os espíritos.
É o virar de uma página na vida do campo.
Mulheres de todas as idades remendam a "copa" e falam da acêfa".Primeiro ceifam-se as cevadas, o centeio e as aveias, a que se dá o nome de "sementes brancas". Começa a azáfama das "manageiras", primeiro contratando o pessoal e, depois, nele superintendendo.
Mas a segunda parte da missão não é pior do que a primeira.
Os lavradores oferecem "jornas" diminutas e com um pão e seis figos de alimento para retemperar forças.
No final chegam a um acordo, ambas as partes acabam por ceder e "ajusta-se" uma "soldada" ,os senhores tem a faca e o queijo na mão...
Na véspera do começo é grande a excitação que reina nos povoados e as lojas estão cheias de clientes, que levam fiado, prometendo pagar no fim da "empreitada".
Quando o relógio da torre, cumprindo a sua missão de informar as horas, bate as três badaladas, todos acordam em alvoroço, ao mesmo tempo que a responsável pelo "rancho" vai de casa em casa, chamar as outras mulheres; dá pontapés e murros em portas e postigos.
Desembaraçam-se dos xailes, tiram as bolsas da "merenda" e as foices que trazem à cabeça, iniciando o "cante", por vezes acompanhado de "pandeiretas".
Olhando o céu, extasiadas, fazem estrugir por cima do casario branco um cantar vibrante de sentimento e entusiasmo, a marcar compasso, imprimindo uma cor que se casa com o ambiente.
Ao chegarem à seara descansam, sentam-se no chão, cada uma conversando para seu lado, numa autêntica algazarra, que só termina quando chega o "guarda" ou o "feitor", portadores da ordem de "enregar".
Fazem então os "calções", como nas mondas. Enfiam as braçadeiras, põem nos dedos da mão esquerda os quatro canudos de cana, seguram ao "troço" o chapéu preto, de feltro, enfeitado com papoilas e espigas e, à voz firme e autoritária do "guarda", iniciam a refrega.
Apenas se ouve o estalar dos caules e, de onde em onde, o cantar amigo e leviano da alegre e despreocupada cigarra.
As mulheres vão ceifando, os "atadores", de lenços de ramagens debaixo do chapéu, correm de um lado para o outro a fazer os "molhos" e o "guarda", qual polícia atento e vigilante, de quando em vez dá as suas ordens.
De vez em quando, montado num burro ou num macho velho, devidamente arreado com uma albarda remendada, donde pendem as cangalhas que transportam os cântaros de barro, surge o "tardão", que com a água fresca refresca os corpos afogueados.
À hora do almoço, sentam-se à sombra das azinheiras e outras árvores vizinhas, desmancham os calções, tiram o chapéu, o lenço e as braçadeiras.
Segue-se o abrir das bolsas e cabazes ou "cabanejos", donde tiram o pão e o conduto (por norma azeitonas ou uma bóia de toucinho às vezes já rançoso); raras são as que trazem refeição completa.
Dormem depois uma sesta.
Este tempo de descanso que é mais fugidio que um raio de luz atravessando uma vidraça, passa "num ar que lhe dá".
Ainda não estão refeitas da estafa da manhã e já começam nova etapa, esta ainda bem mais difícil por estar muito mais calor.
E assim se passa todo o santo dia, até à "hora de soltar".
Os "atadores" quedam-se por mais algum tempo na "restolhice", a atarem os últimos molhos, voltando depois todos juntos para o "monte", em busca do descanso, realmente bem merecido.
Embora o trabalho seja duro, por vezes ainda se ouvem quadras cantadas ao desafio, pelas gargantas secas .
POESIA DE FERNANDO PESSOA
Ela canta, pobre ceifeira,
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez;
Canta, e ceifa, e a sua voz, cheia
De alegre e anónima viuvez,
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões para cantar que a vida.
Ah, canta, canta sem razão!
O que em mim sente está pensando.
Derrama no meu coração
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência,
E a consciência disso! Ó céu!
Ó campo! Ó canção! A ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro! Tornai
Minha alma a vossa sombra leve!
Depois, levando-me, passai!
Poesias. Fernando Pessoa