sexta-feira, novembro 12, 2004

O BALDÃO

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O CANTE DO BALDÃO

Em volta de uma mesa sentam-se os cantadores, normalmente juntinhos e sobre a mesma dispõem-se os copos e coloca-se o mais. Buscam posições, procuram parceiros, trocam olhares fugidios, disfarçadamente miram a aparência dos concorrentes, tossem, pigarreiam, limpam a garganta, passam sugestivamente a mão pelo pescoço e invariavelmente lamentam-se pela sua fala que hoje para nada presta.
Tenho estado tão constipado ... se calhar até nem canto, é o costume dizerem.
Mas cantam sempre, é uma desculpa adiantada para qualquer falho ou para iludir os outros se eles se fiarem nas queixas.
Entretanto, todos se aconchegam, ajeitando-se nos lugares para darem largueza ao tocador. E a campaniça começa a retenir a moda da marianita do princípio ao fim. Sempre assim foi e assim será. Tal como o rumo das cantigas, segue obrigatoriamente o percurso inverso ao sentido dos ponteiros do relógio. É um preceito. Uma regra que ficou estabelecida desde o início deste cante para que cada vez que se juntam não tenham de estar a preocupar-se com os pormenores da volta.
Mas depois dos primeiros acordes, os olhares fixam-se na boca e os sentidos nos dizeres do cantador que é o mão. Cresce a tensão, aumenta o desejo, redobra o frenesim e o silêncio do principiante é insuportável. O tocador que já percorreu a moda ponto por ponto então sustem-se, já não abala, pisa as cordas com os dedos esquerdos e desata a repetir a chamada com a unha acrescentada do polegar direito fazendo soltar à viola ganidos de impaciência. Chegados aqui, o cantador já sem saída, ganha fôlego, fecha os olhos, enterra a boina e lá vai.
Lançada a primeira cantiga, as demais já se sucedem sem tanto receio, naquele dito rodar às avessas do tempo.
Enquanto a vez não chega, matina-se na cantiga seguinte, debica-se no petisco e vazam-se os copos. Pouco se fala para não entreter, para não fazer fugir o tino e a rima.
E aos dizeres dos cantadores os outros respondem no flagrante só com incontidos acenos de cabeça ou piscadelas de olho furtivas.
Quando chegar a sua vez logo ripostam se for caso disso e se a habilidade lhes bastar. São regras, são preceitos.
O cante depois começa a buscar-se a si próprio, engendra um fundamento, tem de encontrar um rumo. E a poesia fervilha, repentista, cortante, às vezes marota. De tudo se trata, ali tudo se diz, rimando, com uma musicalidade e uma entoação que nos transportam longe.
Os cantes são desafios à imaginação, à inspiração e à resistência. Duram horas a fio, sempre sem quebras nem pausas, penetram pelas madrugadas como se o tempo a cantar não contasse.
O tocador nada lhes diz, ouve-os, olha-os, de quando em vez deixa escapar um sorriso. Os outros levantam-se nos intervalos da sua vez quando precisam de despejar o bebido, mas o mestre aperta-se, sustem-se, para não quebrar a magia que a viola e o rodopiar das razões geram em volta da mesa.
Discutem mil assuntos, acertam contas antigas, mas filosofam invariavelmente acerca da valia da honra, do dinheiro, do ferro, do ouro, do campo e da serra.
Que saber o seu, que arte a deles.
Do fundo de tal tempo, guardam a memória de cantares antigos, de génios andantes que de feira em feira ganhavam sustento e acrescentavam a fama.
Derivado do despique este cante arreigou-se nas fraldas da serra*, ali se forjou e ali perdura, alimentado pela seiva de gentes ricas em valores tradicionais e senhores plenos da sua identidade.
Readquiriu, recentemente, grande fôlego esta expressão vocal e poética tendo os seus intérpretes voltado a sentir brio na sua arte. O baldão furtou-se a uma morte anunciada e ganhou alma, alento, adeptos, ouvintes, apreciadores. Tem, presentemente, tudo o que é necessário para vencer o esquecimento e continuar a cantar-se no sentido inverso ao dos ponteiros que marcam o ritmo dos dias.

José Francisco Colaço Guerreiro