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O CANTO DO CANTE
JOSÉ FRANCISCO COLAÇO GUERREIRO .
Importa ter consciência
Quem nasceu neste território, lidou desde sempre com modas, com cante e com grupos corais. Crescemos a ouvi-los, amadurecemos na sua companhia e por serem de nós tão próximos, não nos apercebemos da sua decadência paulatina, do seu envelhecimento progressivo e porque se banalizou tanto o seu existir nunca nos preocupámos com o seu futuro.
Poucos perderam horas de sono a pensar nesta realidade e menos se deixaram afectar com um amanhã, que está quase aí, quando e onde o cante seja já um resto de memórias agarradas numa qualquer gravação antiga que escutamos ou na raridade de uma interpretação esporádica a que assistimos, vinda de fora e de longe.
Entrados que somos num processo incontrolável de esvaziamento de alentos e de paixão, importa ter ao menos a consciência de que o cante é o nosso património mais valioso, um elemento aglutinador das espiritualidades alentejanas, uma verdadeira argamassa que nos liga a todos e cada um de nós, a um imaginário sócio cultural colectivo e, por essa via, se constituiu como um verdadeiro farol da nossa identidade.
Mas o cante como expressão viva da nossa cultura, está em plena degradação, minguando de dia para dia o número dos seus intérpretes, esvaziando-se de força e de energia, já que os seus actuais baluartes que são em exclusivo – os Grupos Corais , há pelo menos três décadas que vêm envelhecendo sem que tenham logrado conseguir gerar dentro de si mesmos uma dinâmica de renovação.
Temos de ser realistas
Face a este cenário, temos de ser realistas e não podemos tapar a cabeça com a manta!
Muito embora gostemos de nos animarmos a nós próprios, negando sistematicamente o que é mais do que evidente, envergonhados ou sem coragem para acreditar num fim à vista, é forçoso que olhemos séria e conscientemente para o futuro, lutando para arredarmos da nossa frente o fatalismo de vermos os Grupos caírem, um a um, como as folhas das árvores caem desamparadas no Outono.
A nossa capacidade de acomodação às circunstâncias é grande e por isso ainda vamos aguentando, apesar de tudo, o actual panorama sem grande sofrimento.
Mas se fizermos um esforço de concentração e nos distanciarmos, recuando no tempo, todos concluiremos que eram incomparavelmente diferentes há trinta anos atrás, no visual, na força, na garra e na própria interpretação, qualquer um dos Corais que ainda temos.
O cante de hoje, na óptica da dinâmica dos seus interpretes, é pois, uma sombra daquilo que já foi.
A quantidade é uma ilusão
Por isso, é ilusório fazermos as contas ao número de Grupos inventariados e concluirmos que ainda rondam a centena.
Na sua grande maioria, esses mesmos Grupos estão abalados, têm poucos elementos, falta-lhes estrutura, não têm organização, não têm iniciativa, têm pouca voz, em suma, arrastam-se agarrados ao bordão da vontade de não desistirem.
Por outro lado, os grupos corais infantis que alguns anos atrás surgiram como uma esperança de ressurgimento do cante, pouco a pouco foram sucumbindo e deles quase nada resta.
Paralelamente, os grupos corais femininos que nos últimos anos vieram dar um novo ímpeto ao nosso movimento coral, reduzem-se quase todos à valia das iniciativas em si mesmas e subsistem escorados na força de vontade de meia dúzia de mulheres que teimam em não baixar os braços nem calar a sua voz.
É alarmante
Perante este quadro, temos de rotular como alarmante o estado actual do Cante Alentejano e consequentemente, como eminente, a perda irreparável da fatia mais preciosa da nossa memória colectiva.
E não se trata de falso alarme o que aqui dizemos, nem muito menos, poderá ser uma visão pessimista da nossa realidade.
É antes, a real constatação de um estado de debilidade provocada por um somatório de factores negativos e adversos que empurraram para um beco quase sem saída o nosso movimento coral, pensando no modo como sempre o perspectivámos e idealizámos.
Nunca sonhámos com um Alentejo cantado por três ou quatro afamados Grupos Corais.
Sempre nos batemos pela vulgarização do gosto pelo cante de modo a que a organização, o surgimento e a manutenção de grupos corais em vilas e aldeias fizesse parte e fosse a expressão natural e saudável do nosso estar colectivo.
Mas o silêncio vai-se impondo e em sua antecipação começa a medrar o mal estar, motivado pelo desconforto que resulta da incapacidade de se cantar como sempre por cá se fez.
Uma semana vêm poucos ao ensaio e não se canta.
Na outra semana por uma razão qualquer não se ensaia.
Na outra semana discute-se e não há ensaio.
Menos, cada dia aparecem menos homens e mulheres a formar.
Grande parte dos Grupos não acaba só por falta de coragem de se lhes ditar a morte efectiva, mas a tristeza senta-se todos os dias ao lado dos cantadores e desfila com eles nas arruadas, até que chegue a altura do homem da chave deixar de ir abrir a porta e as vozes dispersarem e logo a seguir emudecerem.
O cante está abandonado à sua má sorte
Se chegámos a este estado, se perdemos a alegria de cantar, se nos faltam as forças para cadenciar no presente, a culpa reside no estado de abandono a que foi votado o cante.
Dada a sua génese rural, o seu futuro tenderia a ser difícil, numa sociedade cada vez mais urbana e onde, por razões de ordem sócio- cultural se rejeitam os estigmas ligados a situações de pobreza, de sofrimento e até de algum aviltamento vividos pelas gerações antes da nossa.
Mas após a ruptura política verificada em setenta e quatro, todos podíamos e devíamos ter crescido, do ponto de vista intelectual, pelo menos o bastante para dissociarmos o cante do trabalho duro e a moda da pobreza.
Podíamos e devíamos ter assumido o cante como nosso, repositório de memórias, coração de um peito grande que é a nossa cultura.
Mas assim não foi.
Os políticos da esquerda aproveitaram-se e os de direita demarcaram-se dos Grupos. Mas, nem uns nem outros, inscreveram o cante na prioridade das suas preocupações.
Distribuíram as côdeas que até já vão negando, às bocas pouco exigentes dos corais.O miolo do bolo foi e continua a ser distribuído por outros folclores, com outros artistas, com mais gabarito e de maior rentabilidade nas estatísticas eleitorais.
Isto do cante, é coisa de gente pobre que não é esquisita nem reivindicativa. Se saírem de vez em quando, a passear e bebendo uns copos, não precisam de mais . E o cante, propriamente dito …que graça tem aquilo?
Por isso, os serviços sócio-culturais das Câmaras e os seus vereadores e os seus assessores, nunca perderam muito tempo idealizando soluções para retirar dos braços da morte, há muito tempo anunciada, os corais dos seus concelhos.
Relvaram-se campos de futebol, fizeram-se parques desportivos, alinhavaram-se dezenas de planos de actividade, organizam-se milhentas semanas culturais com orçamentos pesados, mas para o cante faltou sempre a vontade de intervir de molde a proporcionar aos Grupos os meios e os afectos de que eles careciam para viver.
Talvez já seja tarde
Perante este cenário, só a MODA- Associação do Cante Alentejano, poderá desenvolver iniciativas e continuar a apostar e a acreditar no futuro dos Grupos Corais.
Talvez já seja tarde, mas é sempre ocasião de recusar a aceitação deste estado moribundo em que o cante mergulhou.
Deve a MODA multiplicar-se em contactos com os corais, abraçando e acalentando as energias ainda disponíveis, incentivando as vontades ainda de pé, motivando os intérpretes mais arredios, imprimindo organização e qualidade a quantos existem.
Deve também a MODA projectar-se de mil modos, em busca de protagonismo, para que a sua voz possa ser ouvida e respeitada.
Tem de ganhar o estatuto de parceiro cultural, alicerçando o seu poder reivindicativo na valia do cante e, em especial, no espectro dramático daquilo que seria o Alentejo sem os seus cantares, trazendo para o seu seio todos quantos sentem e vivem esta terra na plenitude dos seus valores e como tal recusam admitir tal eventualidade.
Cabe à MODA a ultima esperança de podermos estancar uma sangria velha que conduziu os nossos Grupos a um estado de debilidade já insuportável por mais tempo.
Paralelamente, impõe-se que todos os que ainda sentem a chama da cultura mãe a cerrarem fileiras em torno da defesa intransigente do nosso património mais valioso, mas também em perigo de ruína maior .