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VEM AÍ A MAIOR FEIRA
DO SUL DE PORTUGAL,
A FEIRA DE CASTRO-
Não é uma simples Feira, é um acontecimento rico de História.
Instituída por Filipe II, em 1620, em resposta a uma solicitação feita pelos moradores do concelho que pretendiam obter com o rendimento dos terrádegos (imposto sobre o terreno ocupado pelas barracas e tendas dos feirantes), os fundos necessários à reconstrução da Igreja das Chagas do Salvador (ou Igreja de Nossa Senhora dos Remédios), a Feira de Castro depressa se tornou um dos mais importantes acontecimentos da vida social, económica e cultural do concelho de Castro Verde.
Durante quatro dias e encerrando, invariavelmente, numa tradição que se perpetua, no terceiro domingo de Outubro, e que originou o dito popular de «tão certo como a Feira de Castro», a feira mantém vivos alguns elos com o passado, desde a venda de produtos do pequeno comércio e da indústria familiar, das mantas de lã aos queijos, dos frutos secos aos artefactos da latoaria, das quinquilharias às loiças de barro, das alfaias agrícolas ao mobiliário rústico.
Com o passar dos tempos, a feira acabou por se moldar às exigências do presente e aos ditames da modernidade, tanto no comércio como na indústria do lazer e do divertimento. Porém, continua a mesma no apelo que faz ao convívio, à troca e ao encontro.
Muito se tem escrito e cantado acerca da Feira de Castro, como o belíssimo texto de Colaço Guerreiro, um castrense que sente como ninguém a riqueza histórico-social deste evento:
"ADEUS, OH FEIRA DE CASTRO!
Colaço Guerreiro
Vem do tempo em que a poesia e os ditos envolviam e amenizavam a vida madrasta desta gente quase toda que por aqui nascia, labutava e perdurava até se lhe acabar o existir.
Quando nada havia, para além dos gemidos contidos nas vidas apertadas, as vozes e os cantes erguiam-se e esbracejavam inconformados com o vazio, estendendo-se pelos horizontes de limites indefinidos, em busca de uma largueza inexistente, na essência de cada qual, só conseguida e cimentada num movimento colectivo, fosse ele murmúrio ou moda, fosse enterro ou adjunto.
E por isso, as feiras tinham uma magia que galvanizava os imaginários, onde a solidão entontecia nas voltas dos carrosséis, os olhos abriam-se para os passantes todos e embriagavam-se de novidades, das vistas das coisas não tidas, mas assim possuídas por instantes breves.
A barafunda contrastava com a monotonia dos dias e excitava os desejos mais profundos de animações, de contactos e de afectos negados no quotidiano.
Quando tanto se poupava, sabia bem a extravagancia de uma nesga de polvo assado, da compra de uma flaitinha, de uma plica mais grave, de um cabresto enfeitado, de umas guisadas estridentes.
E fazia bem à economia familiar, vender-se um gadinho, desempatar algumas das mantas tecidas durante o ano inteiro, peugos, cestos, cadeiras ou cajados feitos sem fazer conta ao tempo.Os da terra apuravam uns tostões vendendo barrigadas de água, alugando argolas de manjedoura ou cedendo espaços nas suas casas feitas quartel ou pousada.
Por isso, chegado o Setembro, quando o sol começava a entrar no declínio outonal cortando mais baixo a travessia do dia, a efervescência acendia-se aqui e nas redondezas.
Ainda faltava mais de um mês e a propósito de nada já se dizia que cheirava a feira de Castro. Tudo servia para lembrar o adjunto.
“Vê lá se dás notícia de passar por aí o caleiro que eu preciso de comprar umas arrobas de cal para derregar, porque tenho o pote lá por aí abaixo e daqui a pouco quero começar a caiação, porque não tarda os quartos de um cão, está aí a feira” - recomendavam as vizinhas umas às outras, muito antes de se começarem as ver pelas ruas as escadas empinadas contra as empenas e os vassouricos manobrando na alvura das paredes, enquanto rente ao chão, as que menos podiam faziam os baixinhos.
Depois, à medida que o tempo ia passando, a chuva ou o estio, entravam nos cumprimentos em forma de adivinhação, em concordância de prognóstico ou não, mas acabando sempre com um vamos lá ver, pode ser que não tenha dúvida.
Se caíam uns pingos e as formigas de asa, moles e tontas, apareciam trepando às paredes para depois caírem, aumentava o murmúrio, mergulhava-se numa tristeza colectiva, porque a feira ia ser molhada.
Se a lua levava círculo, se o vento vinha do lado do caldeirão, se as maravalhas penduradas nas paredes se encolhiam, se os ladrilhos mudavam de cor, se as badaladas do sino da igreja se ouviam de modo diferente, se os ossos doíam, se a ferrugem da chaminé se desprendia, se à tardinha o astro se punha de certo jeito, era mais que certo, tínhamos o tempo mudado.
O bom era que chovesse, umas cargas boas aí umas semanas antes da feira. Dava outra vida, porque aumentava a esperança de termos um arraial melhor, acrescentado com o viço dos campos que começavam a esverduengar e das searas também abicando, prometendo boas pastagens para a borregada e boas fundalhas para os celeiros. Vinha ainda a tempo de segurar as bolotas e de engradecer as azeitonas.
Desgraça era se o estio se prolongava até Outubro, sem um bico de erva nos campos e com as semeadas empoeiradas ainda sem um bago de trigo agalhotado.
Antevia desgraça e os gastos na feira eram mais contidos. No lugar três, só se comprava uma panela de barro, em vez de umas botas novas tinha de se ver se as velhas ainda seguravam umas trombas, em vez de um chapéu novo usava-se o desboto, em vez de uma prenda para o enxoval da filha casadoira, levava-se só uma nesga de torrão de Alicante. Contendo até ao limite do nada o gosto inigualável de vir à feira e enfeirar muito mais que um rábano, um cartucho de azeitonas massanilhas e um litro de fava assaria para enterrar dali a semanas.
Mas desnoca maior era quando nas vésperas da feira os céus se rompiam e do ar caíam esgarrões de água sem conta, enchendo barrancos, esvarjando ribeiras, fazendo das estradas atasqueiros e do largo da feira um mar de lama.
Os feirantes sumiam, os ciganos desarvoravam e um ano inteirinho de expectativas e sonhos gorava-se, numa decepção imensa, sem diversão nem proveito, sem registo de prazer, excepção feita para os cantadores do despique e do baldão porque esses, chovendo ou ventando, permaneciam nas barracas durante três dias a fio, agarrados às cantigas, tasquinhando castanhas e emborcando copinhos de medronho. "