segunda-feira, abril 25, 2005

AS CAMPONESAS

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"AS CAMPONESAS" de Castro Verde
de
JOSÉ FRANCISCO COLAÇO GUERREIRO
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Quando fizeram o seu primeiro ensaio, dificilmente podiamos imaginar que o seu “atrevimento” lhes possibilitasse romper preconceitos antigos e a sua resistência, às adversidades do tempo e das falas, conseguisse abrir o espaço necessário para o sonho vingar.
Até então, o cante colectivo em feminino só tivera lugar no campo, no trabalho e nas lidas, onde lhes era permitido e naturalmente aceite, expressarem, ao lado dos homens, a sua sensibilidade e o seu apego cultural à moda. Quando acabaram os trabalhos agrícolas que podiam absorver numa só herdade muitas dezenas de assalariados, em mondas, nas ceifas, na apanha da azeitona e do grão, as mulheres remeteram-se à execução das tarefas caseiras, faltou-lhes lugar na produção, isolaram-se e perderam a oportunidade de continuar a cantar em coro. Pouco a pouco, da memória varreram-se as suas vozes e o seu silencio ganhou foros de costume. Durante tempos assim foi.
Hoje, passados que são já dezanove anos sobre o surgimento venturoso das “Camponesas” e habituados que estamos a ver vários outros coros femininos pontuando de palco em palco e cadenciando de desfile em desfile, não causa mais espanto, nem provoca engulhos ou resistência, aceitar de novo, como natural o canto das mulheres .
Foi assim reposta a verdade, a justiça e a normalidade no cantar da moda.
As “Camponesas” com a sua tenacidade , puseram de pé um projecto cultural que constitui uma dádiva , empenhada e aprofundada , de “Modas Alentejanas" que elas interpretam com uma devoção enorme, nascida da certeza de que assim estão a contribuir para que se avive a nossa memória colectiva e não se restrinja a nossa trajectória vocal ao “canto às vozes” em masculino , deixando-se à mercê do esquecimento uma grande parte da nossa riqueza cultural que também reside no imaginário e na arte das nossas mulheres.
Lembramo-nos ,por exemplo, dos “Mastros” cujas origens julgamos remontarem à época dos descobrimentos, se atentarmos no simbolismo dos seus adereços e enfeites, os bailes de roda dantes feitos “em pagamento de promessas” e agora organizados como marcadores da tradição, por ocasião dos Santos Populares.
Vincando a natureza específica deste cantar informal, "As Camponesas" fizeram regressar à lembrança outros cantes e outras tradições vocais perdidas.
Tiveram assim o condão de trazer à tona do nosso imaginário, com o cunho autentico que as caracteriza, a interpretação de modas de baile de roda que constitui um interessante repositório do nosso cante tradicional . Persistem cantando exemplos de beleza e de grande rigor etno-musical, modas às quais elas emprestam a beleza das suas vozes e o timbre das suas vivências como mulheres e como pioneiras do ressurgir do cante em feminino.
Importa ainda agora sublinhar a entrega imensa que "As Camponesas" fizeram desde logo ao projecto de Grupo,o qual , em si mesmo, implicava uma ruptura com um estar anterior,já sedimentado,feito costume que afastava as mulheres da vida cultural colectiva feita de acções e praticas publicas.Foi necessária uma coragem imensa para romper com as amarras ,para ultrapassar as vergonhas,para vencer os medos. E eram os maridos,bem habituados à mesa posta em horas rigorosas,e eram os filhos presos aos cadilhos,e eram os netos delas dependentes, todos incomodados com a atitude nova daquelas mulheres, por passarem a serem donas de alguns tempos livres.
Foi assim ha quase vinte anos, quando tudo era mais custoso.
Todavia, muitas foram as vozes boas, os cantares bonitos que não se chegaram a ouvir ou logo se calaram, porque a liberdade ainda não desabrochou o bastante para permitir que as mulheres desta terra cantem em grupo.
Ainda assim é. Não raro vemos, tantas vezes sentimos, os olhares tristonhos de mulheres impedidas de fruir o prazer de juntarem a sua voz ao coro, de sairem para fora, cantarem em palcos, participarem em iniciativas longe de suas casas, despontarem elas mesmas sem as peias da observação tutelar dos maridos.
Mas aquelas que insistiram, que venceram e agora se afirmam como protagonistas da arte do cante, porta-vozes da defesa dos valores mais profundos da nossa memória etno-musical, sentem-se compensadas, libertas, diferentes e também indiferentes ao falatório que as linguas viperinas impiedosamente provocavam. Não podemos esquecer o desabafo de uma "Camponesa" septuagenária que em geito de confissão uma vez nos disse: "que me interessa que falem ...o mal delas é inveja de não terem homens iguais aos nossos que nos deixam cantar...eu cá por mim...hei-de continuar a vir até que possa...mesmo que esteja em casa com dôr de cabeça...venho para o ensaio ... ao fim de um pouco estou mais aliviada". E depois... acrescentou: "e a pena que eu tenho é ter a duração quase acabada..." e quando o disse, virou a cara para o lado para esconder as lágrimas que brotavam sentidas, grandes, desprendidas da alma, donde também nascem as "modas" que as "Camponesas" cantam.