quinta-feira, junho 16, 2005

O CANTE E OS SEUS INTERPRETES

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O CANTE E OS SEUS INTERPRETES
de
JOSÉ FRANCISCO COLAÇO GUERREIRO

Nas vilas os grupos resistem, lá para as bandas da cidade capital ,onde em quantidade e qualidade dantes refulgiam, os corais agora envelhecem e definham, nas aldeias ,apesar de toda a conjuntura desfavorável, continuam ainda a desabrochar, pontualmente , iniciativas credíveis que tentam corporizar a tradição e mereciam ser devidamente acalentadas.
No actual panorama, já obviamente preocupante e cujo agravamento tendencialmente se irá aprofundando, praticamente só a MODA- Associação do Cante Alentejano vai esboçando, timidamente, alguns gestos de inconformismo e de denuncia do estado de penúria para onde vai sendo atirado aquele que é o torrão mais rico da nossa cultura popular.
Com cerca de meia centena de grupos associados, a MODA vai promovendo encontros, reuniões e debates onde se desenvolve a reflexão sobre as questões mais candentes e pertinentes que afectam a vida e o futuro do cante alentejano.
Temos consciência do estado de abandono a que os corais têm sido votados , vivendo de costas voltadas uns para os outros e entregues a si próprios, sem beneficiarem de qualquer tipo de enquadramento ou cuidado adequados por parte do governo e das autarquias , estas que se têm limitado a facultar-lhes, quando muito, o transporte para as saídas.
Mas mesmo que esta facilidade subsistisse, contrariamente ao que tem vindo agora a suceder em muitos lugares, tal não era suficiente para dar o alento vital que se impunha, face à crise em que os grupos mergulharam e às características ,às debilidades e à natureza intrínseca dos interpretes do cante alentejano.
Antes de mais, e desde logo ,importava que o poder local, já nem falamos do outro, tivesse a sensibilidade, ganhasse a consciência do papel e da importância que a moda tem na realidade cultural do Alentejo como elemento agregador das gentes e como factor motivador da nossa identidade.
Para além da sua vertente meramente artística, que só por si seria o bastante para dar relevo ao nosso cante , para justificar todo o empenho por parte de quem detém a responsabilidade da vida cultural nos nossos concelhos , acresce ainda a sua valia maior que reside na circunstancia do mesmo ser o único elo que aqui a todos une. A nossa memória colectiva está impregnada de cante. A nossa afectividade foi moldada com a poesia e a melodia das modas e, por sua vez, influenciou o nosso modo de cantar.
Tudo isto justificava que o cante fosse eleito como prioridade primeira dos afazeres dos pelouros da cultura das autarquias. Têm os meios ,a vocação e a obrigação de zelar pelo nosso património. Por isso , deviam cuidar de reflectir colectivamente sobre o cante e os seus interpretes.
Deviam, antes de mais, assumir a problemática do cante como um problema seu.
Urgia que interiorizassem as mazelas dos grupos e se deitassem com elas,para depois poderem sonhar com um estar diferente para os agentes culturais mais entusiásticos e generosos dos seus concelhos.
Sem paternalismos , deviam apoiar, sem interferir deviam promover.
Sem grandes custos , podiam fazer um levantamento da actual realidade coral, inventariando as suas potencialidades e as suas fraquezas de modo a imprimir-se um estar e uma atitude diferentes no dia a dia dos grupos.
Para a sobrevivência do cante é essencial dignificar.
Os grupos têm de deixar de ser olhados como os parentes pobres que se arrastam por gosto e pedem que os oiçam por amor de Deus. Não podem continuar a ser olhados como a imagem viva do tempo da servidão. Se quisermos dar futuro a um tão rico património, é essencial que se dinamizem acções tendentes a mudar a mentalidade reinante que faz afastar os jovens do cante com uma atitude de desprezo incutido por anos de marginalização.Com efeito, importa actuar já, embora tardiamente, com vista a ser valorizado, dignificado, elogiado como merece, o nosso modo de expressão vocal. Nas escolas, nas praças, nos nossos corações.
Condição essencial para começar é que o cante seja considerado Património do Alentejo e os seus intérpretes sejam tidos como parceiros culturais privilegiados pelo poder que nos rege.